
Jesus nos disse para que nos lembrássemos dos presos; para que visitássemos os presos.
Fui algumas vezes fazer trabalho no extinto Carandirú; gravações. Ambiente deprimente e depressivo. Tanto que o diretor após as gravações nos convidou para almoçar. Não tinha fome. Me sentia mal, pesado.Acho que não tem como explicar. Parece um outro mundo. Pessoas enjauladas. Outras menos enjauladas. Para irmos de um pavilhão para outro, a porta (grade) atrás da gente tinha de ser fechada quase que imediatamente. O funcionário nos explicou que para se ter uma rebelião era coisa de 10 minutos. Por isso, após passarmos por cada porta, tinha de haver o fechamento quase imediato. Ouve-se alguém imitando a sirene de ambulância. “Pensei” ser uma brincadeira. Não era. Logo após a sirene, dois detentos dobram a esquina carregando um outro detento “numa maca” improvisada. Não lembro se a maca era uma tábua, ou um lençol.
Visitamos um preso em sua cela. Ele estava preparando seu almoço em um “fogão” também improvisado. Acho que era feito de tijolo ,e o arame que se transformou em uma resistência; substituía o queimador. Tinha almoço para os detentos, mas ele tinha medo de ser envenenado. Visitamos a cozinha, onde era preparada a comida para os presos. Enorme, porém sombria, como tudo que havia lá. “Um canal de esgoto a atravessava”. Em um caldeirão, que me lembrava aquele caldeirão das bruxas de contos de fada, ou de terror, um preso suado trazia nos ombros um saco de batata ou de feijão. Acho que tinha um bico de luz no teto da cozinha enorme, que por não ter janelas, fazia com que o vapor que saía da panela, e não tendo por onde sair, ficasse pairando da metade pra cima da cozinha, de modo que era difícil enxergar o teto. Outro preso nos conta que no dia do massacre em outubro de 1992, ele foi “milagrosamente” poupado. Ele estava na cela. O massacre já estava ocorrendo. Ele, escondido, deitado no chão, sabia que já estava chegando sua hora, pois estavam passando de cela em cela dando tiros e mais tiros…Entraram na cela…era agora; quando alguém gritou lá de fora: “a ordem agora é parar de matar!” É óbvio que isto nunca foi ao ar, pois ficaria claro, que a ordem anterior fora a de matar, e não a de conter a rebelião. E lá dentro do presídio, havia, se não me engano duas igrejas evangélicas, uma católica, e um templo espírita. E esse rapaz começou a frequentar uma das igrejas evangélicas…E interessante, mesmo dentro do presídio ele sofria pressão para não ir à igreja. “Quer droga, a gente te dá, e você paga quando puder, mas não vai nessa igreja não,” eles diziam. Mas ele ficou firme em sua decisão, pois sua mãe já frequentava uma igreja, e ele creditava isso ao fato de ele ter sido milagrosamente poupado no dia do massacre.
Um outro preso, que era advogado, havia dado “um golpe” na VASP ou VARIG, juntamente com alguns juízes. Era muito dinheiro em jogo. Então ele ficou quietinho, até ser liberado por bom comportamento. E quando saísse, o dinheiro lá, à sua espera.Um outro detento, um chinês, havia dado um golpe em seu país, e isso resultaria em pena de morte. Fugiu para o Brasil, e praticamente “pagou” para ficar no Carandirú. Lá dentro havia uma construtora, que era dele. Sua refeição vinha de fora, de um restaurante chinês. Andava pra cima e pra baixo com uma pastinha na mão. Tinha acesso livre à sala do diretor. Se não fosse pelo uniforme, ninguém imaginaria que era um recluso.Não queria conversa. Soube mais tarde que ele “foi solto”, quis dar um golpe em uma mulher, e foi assassinado, provavelmente pelos chineses. No setor onde ficavam os evangélicos, o clima era mais leve. Não fosse pelo uniforme, alguém poderia imaginar que era um grupo de crentes que fora ali para evangelizar. Sempre com um sorriso no rosto e simpatia, eles cantavam hinos da igreja e tocavam violão. Um deles havia cometido um homicídio em Pernambuco…não me lembro bem. Fugiu para São Paulo.Se converteu. Mas um dia, provavelmente movido por sua consciência( o peso na consciência é o pior instrumento de tortura que existe), resolveu
se entregar.
No C.O.C( Centro de Observação Criminológica), no complexo do Carandirú, gravamos entrevista com o Rivinha, um “matador” ou “justiceiro” preso. Ele nos conta como foi parar lá. Ele morava em uma favela em São Paulo. Os bandidos cobravam pedágio dos moradores. Rivinha se recusou a pagar. Então os bandidos entraram em sua casa; o amarraram, e estupraram sua esposa na frente dele. Ele foi até a polícia fazer denúncia. Mandaram uma viatura até a favela, que deu em nada. Quando os bandidos souberam que ele tinha ido até à polícia fazer denúncia, o ameaçaram de morte. Foram para matá-lo, mas foi ele quem matou um deles. Então começou o Pega-Pega, Esconde-Esconde. Sempre que descobrem onde ele está, e querem ir atrás dele, ele é quem acaba matando. Até que um dia, vão atrás dele, na casa de seu irmão. Não o encontrando, matam seu irmão. Revoltado, vai atrás do homem que matara seu irmão. É quando é pego pela polícia. No presídio, se converte. Começa escrever cartas para as famílias das pessoas que ele assassinou, pedindo perdão. Algumas respondem liberando perdão. Outras não. Provavelmente outras nem respondem. Ele nos confessa que tudo isso poderia ter sido evitado, se ele tão somente tivesse ido embora da favela…Passado algum tempo, o homem que matara seu irmão também foi parar no Carandirú. Os presos teriam dito:” o cara que matou seu irmão acabou de chegar.É hora de vingar.” E deram-lhe uma faca. Era hora de provar se ele havia ou não se convertido de verdade. Ele então entra em sua cela, pega uma toalha e um sabonete, e dá para o homem tomar banho. Realmente ele havia se convertido. Em todo tempo que o homem esteve lá, o Rivinha nunca tocou nele. O homem também se converteu, conseguiu a liberdade. Virou pastor.
Há os que dizem que os presos nunca deveriam sair da prisão, que deveriam lá apodrecer, pois são irrecuperáveis. Mas temos o caso de muitos que provaram o contrário. Temos casos de muitos que se regeneraram. Hoje são pais de família, trabalham, vivem honestamente. Há aqueles que saem, vão pregar o Evangelho, e ganham muitas almas. Existe o caso de um ex-presidente, preso, que conseguiu a liberdade( embora digam que não teria saído pela “porta da frente”); se candidatou, e voltou a governar o país. E até hoje, sua “descondenação”, e vitória nas urnas eletrônicas, são discutíveis. Tem também o caso do Kric Cruz, um sobrevivente do Massacre do Carandirú. Passou boa parte de sua vida atrás das grades. Ainda preso escreveu o livro Cria do Governo, excelente livro por sinal. Eu li e gostei muito. Achei a leitura “dinâmica”, não cansativa, embora existam trechos carregados de violência. As pessoas que hoje têm em torno de cinquenta anos para cima, certamente vão se identificar com o cenário, o nome dos automóveis da época, por exemplo, moeda corrente da época, as gírias…tudo escrito de forma simples.
No lugar de hoje, como que para neutralizar os malefícios; os crimes cometidos pelos presos, ou os crimes cometidos contra eles, existe o Parque da Juventude, onde outrora fora erguido o Carandirú.

Lá hoje, as pessoas passeiam, brincam, se divertem; muitas alheias a tudo que já aconteceu naquele lugar, cenário de crimes e castigos, e também de injustiças.